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A Tartaruga de Peniche 

Decorriam os longínquos anos 90, em Ferrel, Peniche. De madrugada, toca o telemóvel. “Mais um problema na piscicultura”, pensei eu. Do outro lado, uma voz aos gritos:

Estamos a sair para aí, só vocês é que a podem salvar, vá andando para lá!
Percebi que era o comandante da Capitania de Peniche e que iam em direção à piscicultura. Fazer o quê? Não tinha ideia.
Vesti-me rapidamente e arranquei para a maternidade. Nessa altura morava a cerca de 2 quilómetros da instalação e rapidamente lá cheguei.

Por aqui a esta hora? Alguma novidade? – perguntou-me o vigilante da noite, enquanto disfarçava o sono interrompido.

Não faço ideia do que se passa, mas o comandante ligou-me aflito a dizer que vinham para cá.
De repente, na escuridão da noite, começa a aparecer uma caravana de luzes descendo as colinas de Ferrel em direção à praia da Almagreira, onde nós estávamos. “Será que vão começar a construir a central nuclear prevista para Ferrel?”, pensei.
A caravana estendia-se por umas dezenas de metros, com cerca de 10 veículos. A encabeçar o cortejo, um jipe da polícia marítima com os agentes e o Comandante, que me parecia um pouco excitado, talvez sobre o efeito daquela bebida que resulta da destilação de cereais. A seguir, um camião dos bombeiros com as luzes todas ligadas, em grandes efeitos luminosos, mais alguns carros de pescadores e a meio uma Toyota Dyna com uma enorme tartaruga coriácea presa por cordas, com ar de quem não estava a perceber nada do que se estava a passar.

Onde descarregamos? Diga um sítio! Pode ser num tanque? – gritava o comandante na minha cara, enquanto eu sentia aqueles vapores etílicos a fazer-me chorar os olhos.

Deixe-me pensar, deixe-me pensar… – tentava eu ganhar tempo no meio daquela confusão.

Pode ser ali! – gritou o comandante para o condutor da Toyota Dyna – Descarregue direto para ali!
Atónito e sem capacidade de reação, observo a báscula da carrinha a levantar e o animal a escorregar diretamente para o reservatório de água do mar que alimentava a maternidade dos robalos.

Amanhã falamos! – disse o Comandante enquanto dava meia volta com a caravana em direção a Peniche.
O reservatório de água salgada era um simples tanque feito de taludes de areia e recoberto com uma tela. Na parte de cima deste tanque, estava o edifício da maternidade, e na parte de baixo, mais junto ao mar, o posto de transformação elétrico, o PT. O tanque recebia a água do mar e daí era distribuída para os tanques de larvas, nurserie, reprodutores e cultivos auxiliares.
A tartaruga começou a tentar sair do reservatório, subindo o talude do lado do mar. Talvez por sentir o apelo oceânico, o animal estava imparável nas suas investidas e a areia do talude começou a ceder. Note-se que este reservatório deveria ter cerca de 300 m3 de água e que se o talude cedesse, essa água iria direta para o PT.
Quase por instinto, eu e o vigilante, que nessa altura já estava de olhos bem arregalados, pegamos em duas tábuas e fazendo alavancas tentamos empurrar o animal, demovendo-o do seu intento. Mas o bicho insistia, e nessa sua ação a água do reservatório começava a ficar cada vez mais turva pelos sedimentos levantados pelo animal.

Vai lá dentro ver como estão os peixes! – disse eu ao vigilante, enquanto fincava a tábua no ombro e tentava mais uma vez empurrar a tartaruga para dentro de água.

Está tudo à superfície com a boca aberta!
Nessa altura deveríamos ter algumas centenas de milhares de robalos em tanques interiores alimentados em circuito aberto pela água do reservatório.

Mete as mangueiras de oxigénio, que eu não posso sair daqui!
E assim continuamos o resto da noite, trocando posições, empurrando a tartaruga, medindo oxigénio, colocando e tirando mangueiras, até que o dia amanheceu e começaram a chegar os técnicos à instalação e pudemos finalmente descansar um pouco.
Pelas 10 horas da manhã chegou outra comitiva: novamente o jipe da Polícia Marítima, um jipe do ICNF, mais uma retroescavadora e alguns curiosos.

Vamos tirá-la com a máquina! – Ordenou o elemento responsável do ICNF.
De imediato entraram no reservatório e empurraram o animal, também ele já fatigado, para dentro do balde da máquina. Colocaram-no na margem do tanque, fotografaram, mediram, pesaram e identificaram-no. Tratava-se de uma tartaruga de couro, ou tartaruga gigante (Dermochelys coriácea) que seguia a sua rota de migração quando foi capturada por uma rede de cerco da sardinha.
Terminado esse trabalho árduo de taxonomia, decidiram devolver a tartaruga ao oceano, e levaram-na na máquina para a praia de forma que as ondas a banhassem. A tartaruga não se mexia, apesar dos esforços daquela gente toda a empurrá-la para o mar. Aquele mar que durante toda a noite a chamava, deixou de ter interesse. Foram largos minutos de esforço a empurrar o animal para a água, onde finalmente acabou por entrar.
Nessa noite, já em casa, provavelmente a desfrutar daquela bebida que resulta da destilação dos cereais, qual Comandante de Capitania, fui assolado por uma questão que ainda hoje não tenho resposta: então se a tartaruga foi capturada na rede de cerco, porque não a libertaram logo no mar?

Isidro Blanquet – SG da Aquacultores.pt